sexta-feira, 12 de agosto de 2011

UMA HISTÓRIA MUITO MAL CONTADA

Assisti recentemente em um programa de televisão local, um psicólogo que respondia as perguntas do entrevistador, âncora do programa, sobre a diferença entre Psicanálise, Psicoterapia e Psiquiatria. Quando questionado sobre o papel do Psiquiatra, definiu que seria “um médico que tratava os transtornos com remédios”. Indagado sobre por que psiquiatras realizavam psicoterapias, sorriu e foi enfático: “Psicoterapia é papel dos psicólogos”, inclusive acrescentou que a Psicoterapia, em si, tinha origem na ciência Psicologia. O tom confiante e irônico do entrevistado, dava margem para que o telespectador leigo, levasse uma interpretação errônea da História, e talvez para os menos atentos, engolir uma idéia de que psiquiatras estavam se metendo em campo alheio.
É difícil estabelecer uma data precisa de quando o termo Psicoterapia tornou-se algo concreto e adquiriu o conceito que tem hoje. Sabe-se porém, de maneira evidente e comprovada, que no século XIX, o termo se mostrou presente pela primeira vez nos trabalhos do médico Walter Cooper Dendy (1794-1871), em 1853, no artigo “Psychotherapeia, or the remedial influence of mind.” Em 1872, o médico Daniel Hank Tuke (1827-1895), utilizou o mesmo termo em seus trabalhos e em 1891, o médico Hippolyte Bernheim (1840-1919), publica seu livro: “Hypnotisme, suggestion, psychothérapie”.

Sem dúvida a Psicoterapia surge em permeio a uma prática mais antiga, a hipnose, que no contexto médico, tem suas histórias entrelaçadas, principalmente no fim do século XIX. A primeira citação como hipnotismo coube ao médico James Braid (1795-1860), no ano de 1843. Nesse contexto, médicos conhecidos da época já se debruçavam sobre o tema, entre eles o famoso Jean Martin Charcot (1825-1893). Mais adiante, os que mais repercutiram no início de uma prática mais consolidada foram os médicos Josef Breuer (1842-1925) e Sigmund Freud (1856-1939).

Essa introdução, neste texto, se fez para mim, necessária. Reflito como a Psicoterapia, poderia ter nascido de um meio diferente que não fosse o da Medicina, a formação que por origem, tinha no seu ofício, o cuidar das agruras do ser humano, sejam elas físicas ou psíquicas. De fato, a Psicoterapia (e a Psicanálise) como entendemos hoje, nasce na Medicina. E não poderia ser de outro modo. O que dizer dos médicos psiquiatras Sigmund Freud (1856-1939), Carl Gustav Jung (1875-1961), Sandór Ferenczi (1873-1933), Ernest Jones (1879-1958), Karl Abraham (1877-1925), Michael Balint (1896-1970), Wilfred Bion (1897-1979), do médico pediatra Winnicott (1896-1971), e do médico Jacques Lacan (1901-1981)? Os expoentes da Psicanálise eram quase todos médicos. Será que o austero psicólogo da entrevista zombaria destes psicoterapeutas por serem, enfim, médicos?

A Psicanálise no início do século XX se difunde e populariza-se entre estudiosos. Em seguida, vieram práticas psicoterápicas de natureza e filosofia diferentes e opostas á Psicanálise, mas sempre com médicos na sua feitura. Pearls (1873-1970), criador da Gestalt-terapia, os fenomenologistas Biswanger (1881-1966) e Boss (1903-1990), todos médicos psiquiatras. O médico Jacob Levy Moreno (1889-1974) fundou o Psicodrama. O médico Wilhelm Reich (1897-1957) desenvolveu a Psicoterapia Corporal. Sem falar no conhecido Aaron Beck, médico psiquiatra, pioneiro da Terapia Cognitivo-Comportamental.

Outra pergunta poderia ser feita. Nos tempos atuais, a Psicanálise morreu na Medicina? A não ser que a lista que segue não fosse só de Médicos: o egípcio André Green, os franceses Jean Laplanche e Charles Melman, este seguidor de Lacan, os italianos Antônio Ferro e Piera Aulangnier (1923-1997), o argentino J. R. Nasio, os americanos Donald Meltzer (1922-2004) e Thomas Ogden, a alemã Marie Langer (1910-1987), e os brasileiros Fábio Hermann (1944-2000) e David Zimmermann (1917-1998).

Mas voltando a entrevista. Outra história continua mal contada. De onde vem afinal tanto rancor e mágoa contra o profissional médico?

Uma disputa por espaço se faz presente entre médicos e outros profissionais e não é de hoje, já percebida na Grécia antiga e explorada por Hipócrates (460 a. C - 377 a.C) no seu “Acerca da arte da medicina”. Não sendo exclusividade contra a Psiquiatria este peso, e sim contra a Medicina.

O século XX reservou acontecimentos que colocariam em xeque a atividade psiquiátrica. Neste propósito, eclode a dita Antipsiquiatria, a chamada Reforma Psiquiátrica e a Luta Antimanicomial no Brasil. Os hospitais psiquiátricos foram comparados aos campos de concentração nazistas, na verdade ao que mais a humanidade passou a abominar no século XX, na sua segunda metade até hoje, como o símbolo do que há de mais perverso no Homem. O chamado “discurso médico” foi atacado por Jacques Lacan, no furor dos anos 60, servindo de filosofia dominante até hoje nas cadeiras de Psicologia, que utiliza no filósofo Michael Foucault, uma referência bibliográfica para suas argumentações anti-médicas.

Cabe aqui uma avaliação do livro “História da Loucura” (1961) de Foucault. Na verdade, sua tese de doutorado que se transformaria em livro. No ano de 1972, a editora francesa acrescenta um posfácio dos filósofos Henri Gouthier (1898-1994) e Jacques Derrida (1930-2004) emitindo críticas a respeito das teorias, e de sua abordagem sobre Descartes (1596-1650), o chamado cogito cartesiano. Vale ressaltar que os textos foram suprimidos na primeira edição brasileira de 1978... Um relato bem contado pelo professor Fernando F.P. Freitas (UERJ), no seu artigo “A história da psiquiatria não contada por Foucault” de 2001, publicado na revista História, Ciências, Saúde - Manguinhos. Uma leitura indispensável.

O autor do artigo em questão relata que Foucault ao dissertar sobre a criação do Hospital Geral de Paris em 1650, diz que a medida nada tem a ver com uma política de assistência em saúde, mas sim de “uma instância de ordem”, obviamente servindo para o seu eixo de raciocínio, a exclusão. Os historiadores modernos (Postel, Quétel, Swain) mostraram uma realidade diferente: um processo de reordenação das políticas de ordem pública, voltada para uma crescente população de pobres, fruto de uma passagem do mundo feudal para o capitalista. Não se tratava de uma medição de loucura/razão. Além disso, outros equívocos e negligências históricas são evidentes na obra foucaultiana: sobre a figura de Philippe Pinel (1745-1826), e o qualificativo “moral”, que significava todo tratamento que partia dos métodos psíquicos (no caso, não orgânicos), e não de uma ordem de poder, de “moralismo”, como se pregou.

Não poderia ser diferente. Foucault tinha na verdade, como linha principal de pensamento, a contestação de qualquer tipo de poder, e seus escritos caíam em cheio nos anseios das classes estudantis, trabalhadoras, operárias, ainda mais aqui no Brasil na época da ditadura militar. Não é de estranhar que um dos pontos de partida da luta antimanicomial começou com o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), no ano de 1978. Uma questão muito mais político-ideológica do que médica (leia-se baseada em evidência médica).

Concluindo, volto a Hipócrates, que nos revela: “é grandioso o testemunho da existência da arte, uma existência magnífica, pois até mesmo aqueles que não acreditam na sua existência são salvos por ela”. E por fim: “Há aqueles que, ao mostrar o resultado de sua própria pesquisa, mesmo sem acreditar no que eu afirmo aqui, realizam a arte de depreciar as artes.”

Uma história pode ser contada de várias maneiras, mas é preciso que se conte a verdade.

Gustavo Xavier é Médico e Psiquiatra

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
1. As Ligações Históricas entre a Hipnose, a Psicoterapia e a Psicologia. Ana Almeida-Melikian1, PhD & Cláudia Carvalho, PhD. 11º Congresso da European Society of Hypnosis (ESH), 2008. Revista Psychologica da Universidade de Coimbra.

2. A História da Psiquiatria não contada por Foucault. Fernando Ferreira Pinto de Freitas. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, rio de Janeiro, vol 11(1); 75-91, jan-abr, 2004.

3. História da Loucura. Michael Foucault. Ed. Perspectiva, 2003.

4. Memória da Psicanálise. 2ª Edição. Coleção Mente e Cérebro. 2009. Volumes 1 a 12.

5. Psicoterapias. Coleção Mente e Cérebro. 2010. Volumes 1 a 4.

6. Sobre o Riso e a Loucura. Hipócrates. Organização e tradução de Rogério de Campos, 2011.

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