sábado, 18 de dezembro de 2010

Artigo Prof. Edilson Pinto

O óbvio que ignoramos
“Nada é mais nocivo do que enxergar com os olhos”
Edilson Pinto


Diferentemente do poeta Manoel de Barros que, certa vez, escreveu: “gosto de ver o que não aparece...”, eu, talvez, muito mais pretensioso, gostaria de ver mesmo é o que aparece. Sim, caro leitor, não tenha dúvida de que a coisa mais difícil é ver o que está na nossa frente. Duvida? Então, leia o conto “A carta roubada”, do fantástico escritor Edgar Allan Poe: Um documento extremamente comprometedor foi roubado dos aposentos reais. Todos sabem que foi o Ministro D. quem roubou. E todos sabem que ele escondeu em seus aposentos num quarto do hotel onde morava. Todas as noites a polícia entrava e vasculhava todos os recantos e nunca encontravam a bendita carta. Chegaram até a examinar o edifício inteiro, quarto por quarto, todos os móveis dos aposentos, e nada. A carta nunca era enc ontrada. Após dezoito meses, o Sr. Dupin sabendo da história, e interessado na recompensa de cinco mil francos, entrou nos aposentos do Ministro, e em segundos encontrou um vistoso porta-cartas e estava exatamente lá, onde deveria está, a carta com o selo real.
Portanto, é isto mesmo, caro leitor: “nada é mais oculto do que o visível”. Por isso, tem razão Saint-Exupéry ao nos lembrar de que os olhos são cegos. Só enxergamos mesmo com o coração: “O essencial é invisível aos olhos”.
A nossa profissão há muito se encontra cega - e diferentemente da justiça que cega os seus olhos, para ver se consegue enxergar melhor a verdade-, a medicina cegou, não os seus olhos, mas sim, o seu coração... e este pequeno detalhe, está fazendo toda a diferença e sendo responsável por toda a nossa miséria.
Se hoje, somos mal remunerados, trabalhando em condições desumanas, enfrentando uma enxurrada de processos na justiça civil e nos próprios Conselhos Regionais de Medicina (CRM’S), sem termos uma lei ainda que regulamente a profissão médica, etc. etc. tudo isso, é culpa única e exclusivamente nossa. Nós não nos respeitamos! Parece tão óbvio isto, que chega a ser até cômico, se não fosse trágica, a constatação deste pequeno detalhe: somos os únicos e verdadeiramente culpados pela nossa própria miséria!
 Ora, veja só caro leitor, quantas e quantas vezes, não culpamos os nossos “digníssimos” representantes políticos por não valorizarem a saúde, por nos remunerarem de forma aviltante e não nos darem condições dignas de trabalho? Sempre! A culpa é sempre deles. Esquecemos de que inúmeras vezes esses cargos máximos do poder público são ocupados por médicos: a bancada da medicina, no poder legislativo, sempre teve número suficiente para poder defender a dignidade da nossa profissão... e o que vemos é exatamente o contrário: médico não gosta de médico.  
Chego a rir quando nos chamam de corporativista. Disse em 2003, num artigo, que nenhuma classe é mais desunida do que a nossa e o preço que pagamos por isso – pela desunião (muitas vezes, chegamos atrasados ou nem chegamos ao plantão, deixando o nosso colega tocando o serviço sozinho...) - é estarmos sempre e sempre no fundo do poço... o que deveria ser um exército de amantes e amados, como preconizava Fedro, no seu discurso no “Banquete de Plantão”, transformou-se - pela nossa cegueira miocárdica- em um exército de desunidos. Estão aí as pesquisas feitas, em vários CRM’S, mostrando que sempre por trás de uma denúncia contra um médico, há um outro “médico” instigando o paciente..
Mudemos agora, caro leitor, o nosso olhar para outro lado: o que é que quer um médico se submetendo a humilhação de fazer parte de um plano de saúde? Quem ganha com esta relação de promiscuidade entre os planos de saúde e os médicos? Essa resposta é muito fácil, por isso eu mesmo vou responder: só não somos nós! Perdemos a nossa autonomia; agora, somos escolhidos por constarmos num catálogo de convênio. A relação, que era próxima, pessoal e amiga, transformou-se em distante, impessoal e hostil. Ficamos a mercê, não mais apenas do Código de Ética Médica, mas sim do código de defesa do consumidor. Até o PROCON quer determinar, agora, o número de atendimentos médicos como também o tempo de retorno e espera dos pacientes, nos nossos consultórios. Nós não nos respeitamos! E o PROCON tem conhecimento disto...
Veja este triste relato do escritor Rubem Alves: “O médico de antigamente era um herói romântico, vestido de branco. As jovens donzelas e as mulheres casadas suspiravam ao vê-lo passar... ele era um cavaleiro solitário que lutava contra a morte. Quem jamais ousaria pensar qualquer coisa de mal contra o médico? Hoje são comuns os processos por erros médicos por imperícia. Ser médico transformou-se num risco. Porque ninguém mais acredita na sua santidade... um dia fui ouvir uma palestra do Diretor do hospital da cidade de Princeton, nos EUA. Ele começou sua preleção com esta afirmação: ‘O hospital de Princeton é uma empresa que vende serviços’. Meu Deus! Eu pensei: ‘aquele médico não exist e mais’. E percebi que, agora, os médicos se encontram lado a lado com prestadores de serviço, os encanadores, os eletricistas, os vendedores de seguros, os agentes funerários, os motoristas de táxi. É só procurar na lista de classificados. A presença mágica já não existe. O médico é um profissional como os outros. Perdeu sua aura sagrada. E me veio, então, uma definição do médico compatível com a definição do diretor de Princeton: ‘um médico é uma unidade biopsicológica móvel, portadora de conhecimentos especializados, e que vende serviços’... acho que os médicos, hoje, são infelizes por causa disto: eles resolveram ser médicos por desejarem ser belos como o cavaleiro solitário, puros como o santo, e admirados como o feiticeiro. Era isso que estava dentro deles, ao tomarem a decisão de estudar medicina. E é isso que continua a viver na sua alma, como saudade... os médicos sofrem por saudade d e uma imagem que não existe mais”.
Caro leitor, parece tão obvio que mudar tudo isso só depende de nós, que fica difícil, talvez, de enxergarmos. Tenho certeza de que se nos uníssemos; se buscássemos o caminho da ética; se procurássemos crescer sem tentar destruir o outro... conseguiríamos, sem dúvida, resgatar esse médico de antigamente. A verdade é que nós somos o único obstáculo a ser vencido, na busca de resgatar a dignidade da nossa profissão.
Conta uma Lenda que, certo dia, um ardil estudante querendo colocar o seu mestre em apuros, bolou um plano: tomaria nas mãos um passarinho e quando o mestre estivesse a ensinar os outros discípulos, ele formularia a seguinte pergunta: “Mestre, esse pássaro que tenho aqui atrás, está vivo ou morto?”. Se o mestre dissesse que estava vivo, ele o esmagaria com as mãos e mostraria o corpo do pobre pássaro; se dissesse que estava morto, ele o deixaria voar livremente. Qualquer resposta, colocaria o mestre em apuros. No entanto, quando a pergunta foi feita ao mestre, na sua simplicidade, respondeu: “o destino desse pássaro, meu amigo, está em suas mãos!”.
Pois bem, caro leitor, é assim, como o mestre, que eu termino: O destino de mudar os tristes caminhos da medicina só depende de nós! Única e exclusivamente de nós!
Francisco Edilson Leite Pinto Junior
Professor, médico, escritor e conselheiro do CREMERN (edilsonpinto@uol.com.br)

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