quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Cidade da Esperança. A última que morre.


Os últimos anos tem sido desanimadores. Trabalhando há três anos na Policlínica Oeste, no bairro Cidade da Esperança (ou simplesmente “Esperança”), em Natal, e exercendo a Psiquiatria no nível ambulatorial, sou testemunha do descaso e desorganização do serviço público, da assistência em saúde mental neste município. Situação semelhante em todas especialidades, acredito.
Pra início de conversa, o estado físico da unidade é deplorável. Costumo dizer que se vão implodir o Machadão para construir outro estádio milionário, não custaria muito dar uma passadinha lá na “Esperança”, e com o resto dos explosivos derrubar também o centro, construindo um novo com o que restou da metralha daquele estádio. Parece maluco, mas o inverso é tão bem absorvido pelas pessoas, que eu me dou conta que a prioridade é outra mesmo. Na verdade, por um período nem precisava de implosão. No ano de 2009, quando chegava mais uma vez para o atendimento, fui informado que mudaria de sala, pois na minha costumeira, o teto havia caído. Caiu fora do meu horário de atendimento e graças a Deus, “Esperança” é última que morre. Recentemente, o muro caiu também, mas meu carro estava em outro lu gar. Vou escapando.
O Distrito Oeste tem cerca de 250 mil habitantes, composto pela Cidade da Esperança e mais nove bairros, clientela que se dedica aquele ambulatório. Entendendo ambulatório como atenção na comunidade, extra-hospitalar, não consulto somente casos elementares ou que não precisem de maior suporte. A clientela é absurdamente grave, crônica, casos complexos, em conjunto com outros transtornos mais leves, que estão se tornando cada vez menos comuns. No meu papel, encaminho estes pacientes para níveis mais organizados e consistentes de atendimento, segundo tenho informação pelo Ministério da Saúde, os chamados CAPS, porém os pacientes retornam, não conseguem ser absorvidos pelos CAPS, e voltam, claro, para a “Esperança”, onde sabem que serão atendidos de fato, afinal é a última que morre.  
Mas a “Esperança” não é exclusividade destes bairros. Toda Natal e municípios vizinhos vão atrás de atendimento pelo Psiquiatra, para lá mesmo, onde o teto cai e o muro cai, mas por não ter morrido ainda, é a última alternativa. Ambulatório de Psiquiatria não é prioridade do SUS. Há quem diga que o ambulatório não serve para nada, mas estranhamente, os CAPS também encaminham para a Policlínica, além de hospitais, PSFs, NASFs, presídios, órgãos variados da justiça, etc.
No atendimento, a bizarrice é o comum. Atendo na sala da Ginecologia, decorada pelo mofo e infiltrações, entre colposcópios e banquinhos, ornamentados pela ferrugem, mobiliada por cadeiras de ergonomia jurássica, design habitual do SUS. Invariavelmente não tem receituário, por exemplo, e muitos voltam para casa sem a receita. Não tem sido muito bom informar ao paciente que eu não posso fazer nada e que já tentei de tudo. As reclamações não acabam. Quando aparece o receituário, não tem a medicação nas farmácias, mesmo as mais simples.
A peregrinação continua para o paciente, em busca de local que tenha receituário, de farmácia que tenha medicação, de dinheiro para comprar a medicação que não apareceu, aumentando seu custo de vida. O que não diminui é o número de pacientes, de pessoas sem atendimento, de pessoas adoecendo. Mesmo assim, na “Esperança”, o último suspiro pode ser dado, a última queixa cuspida. Estamos lá para escutar. Isso não faltará, posso garantir, depende de mim.
Na “Esperança” nós seguramos a barra, sem medo, atendendo em situação precaríssima, pacientes violentos muitas vezes, alcoolizados, esquecidos pela sociedade, quase invisíveis, mas lá estão sendo vistos, por mim pelo menos, não estou cego ainda.
Não tenho como saber, quantos por depositarem na “Esperança” sua última esperança, estão conseguindo caminhar, viver, sem internamento hospitalar, sorrir um pouco que seja. Mas sei que são muitos, que o ambulatório tem sua inestimável importância, vai resistindo, nem que seja com uma escuta apenas, com um olhar apenas, mesmo que seja com nossa pequena contribuição, á margem dos discursos teóricos dos gestores, do duvidoso compromisso político das autoridades. Ainda há esperança.

Gustavo Xavier é psiquiatra e esperançoso.

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